A literatura vive tempos democráticos. Hoje a edição de livros é acessível a qualquer um. Todos podem aderir a blogs ou editoras on-line que publicam os livros de quem quer que seja. Com isso, todo mundo que se diz escritor vira um escritor.

Será?

         Lamento discordar, mas o fazer literário envolve muito mais coisas além da publicação de uma obra.

         Na minha carreira, muitas vezes me defini com orgulho como uma “operária das letras”, uma profissional que não encarava a escrita como tarefa de uma elite superior, mas colocava a “mão na massa”, sem preguiça ou esnobismo.

         Creio que todo artista, se quer ser profissional, precisa arregaçar as mangas e se dedicar cotidianamente ao fazer artístico. Curioso é que de modo geral as pessoas aceitam que um músico, um pintor ou bailarino dediquem muitas horas diárias no exercício de sua arte para ganharem excelência, mas acreditam na “magia da escrita”. Como se o escritor vivesse “de inspiração”, quando uma Musa misteriosa soprasse nos seus ouvidos todo o conteúdo da obra, de maneira mágica e de certa forma indolor.

         Não é assim que funciona. 

         Já dizia um poeta que escrever é “10% inspiração e 90% transpiração”. A ideia-base para um enredo até pode surgir de maneira esotérica e misteriosa, mas o livro não sai inteirinho desse modo sobrenatural. Há que fazer uma, duas, dez versões da mesma história. Há que montar e desmontar a carpintaria literária; reescrever um diálogo dezenas de vezes para conseguir a almejada coloquialidade, há que se prestar muita atenção no mundo real que embasa a história ficcional e se faça muita pesquisa para conseguir o que se planeja.

         Sempre acreditei na pesquisa. Mesmo nos primeiros livros, que aparentemente nasciam de minha vivência – caso de CRESCER É PERIGOSO, por exemplo, em que lecionava em colégio paulistano com centenas de alunos ‘orientais’ – nunca me ative às primeiras impressões. Entrevistei uma colega nissei, pesquisei palavras cotidianas em japonês e li livros sobre imigração dos japoneses em São Paulo para criar o meu Gustavo, adolescente sansei enfrentando seus dilemas de ser “diferente” dos colegas mais europeizados. Para caracterizar o dono de um “pet” diferente (no caso, um lagarto), fui conversar com o dono de lagartos e cobras, em O PRIMEIRO DIA DE INVERNO. Li miudamente a obra de Edgar Alan Poe para criar o clima de mistério em A MALDIÇÃO DO SILÊNCIO. Mais recentemente, viajei para a Amazônia (no caso, Acre e Amapá) para conseguir a realidade pretendida em FRONTEIRAS e MARCO ZERO. Pesquisar é importante! Mas sei também que a pesquisa em sim mesma não cria um bom livro. Listar uma sequência de dados científicos não faz de uma obra algo ficcional, resulta quase em tese de mestrado.

Então o que define um escritor?

O artesanato da literatura se faz com dedicação, observação, leitura, pesquisa. Recursos que estão cada vez mais acessíveis na mídia. O candidato a escritor pode ter em segundos todo o pacote do livro, descobrir uma imensa lista de temas prováveis; “n” modelos narrativos à maneira um escritor X ou Y ou seu estilo com dezenas de exemplos.

Atualmente, cada vez mais recursos facilitam a escrita. O ChatGPT, por exemplo, promete um futuro em que todos, democraticamente, podem escrever “à maneira” desse ou daquele autor.

O futuro parece acessível para qualquer escritor, a literatura é um pacote bem servido. Porém a amarração desse pacote-livro carece do fio de linha artesanal, que se chama talento.

Talento é essa aptidão inata, capacidade natural que separa o habilidoso do talentoso. Isso não se consegue pesquisando em internet. É um dom e também uma conquista.

Pretendo falar mais sobre talento em meu próximo tema de GARRAFAS AO MAR.