Ao longo de minha carreira tive muitos livros adotados em escolas, por serem inovadores ou arrojados. Também vi muitos deles serem recusados exatamente por esses motivos. Certas escolas, temendo a reação negativa dos pais de alunos, optavam pelos livros clássicos, por suporem que seriam mais “seguros”, isto é, menos incômodos ou polêmicos.
Que me perdoem esses educadores que optavam pela literatura café-com-leite (bem mais leite que café, é claro), supondo que clássicos da literatura seriam inócuos. A boa literatura, os livros que marcam gerações de leitores, apresentam abordagens inovadoras para sua época. Às vezes, têm personagens polêmicos ou temas fortes, instigantes ou críticos da moral vigente.
Um exemplo: OS TRÊS MOSQUETEIROS, de Alexandre Dumas, é conhecido por muita gente como um inofensivo livro juvenil de aventuras. Que engano! Há muita sensualidade nas entrelinhas… até o fato dos mosqueteiros, rapazes pobres, dependerem de suas ricas amantes para custearem as próprias armas. O livro cita mesmo casos em que os maridos traídos se compraziam com a própria generosidade, na forma de uma rica armadura ou um bom cavalo, para o amante da esposa.
Este é um exemplo de muitos. Aqui cabe uma breve análise sobre o “clássico”. Uma obra pode ser popular em sua época, vender milhares de exemplares, ser traduzida para muitos idiomas e NÃO se tornar um clássico. Essa possibilidade existe quando o livro continua seduzindo novas gerações de leitores, por muito tempo. Seu tema não envelhece. Os personagens se tornam paradigmas de comportamento (bom ou mau). Os recursos estilísticos são analisados e podem até servir de modelo para novos escritores.
Atualmente, há ferramentas na internet oferecendo a candidatos a escritor a possibilidade de “escrever à maneira de”. Basta dar um breve comando e pedir, por exemplo, “história de amor impossível à maneira de Shakespeare”. É bem possível que surja um belo pastiche de ROMEU E JULIETA, até com a cena do balcão e as lutas de espada… Mas e daí? A nova obra conseguirá mesmo seduzir e comover milhares de leitores, como o fez Shakespeare?
Dificilmente. Um livro que nasce com a intenção de parodiar tal e tal enredo já é candidato a nada, leitura amena e esquecível, irmão pobre do original. Hoje, basta escolher um dentre muitos livros que estão por aí on-line pra descobrir que muita coisa parece escrita por uma máquina. Ou provavelmente contou com a ajuda deste tipo de ferramenta pra “encher linguiça” de um enredo óbvio.
Sou leitora assídua e tenho o Kindle Unlimited no meu aparelho. Sempre checo as possibilidades de encontrar algum romance atraente, mas na maioria das vezes acabo frustrada. Se os enredos são óbvios, a carpintaria literária é decepcionante. Passa a ideia de que foram escritas por máquinas, de tão “bem escritas”! Quanto aos personagens, na maioria é “gente de papel”.
“Gente de papel” é aquele tipo de personagem que age de jeito X ou Y pra corresponder ao perfil programado ou se encaixar direitinho no enredo. Fala corretamente sem emoção; mantém a linearidade dos sentimentos e não se contradiz; tem um comportamento coerente. As pessoas de verdade não são assim! Nós somos contraditórios, falamos com emoção mais do que razão, agimos de maneira pouco linear… Um bom livro é aquele que consegue registrar essa maneira de ser, toda essa irregular condição humana.
Lamento um futuro que uma máquina nos guiará através da mediocridade. Tudo bem organizadinho (como máquinas sabem fazer), mas já testado e seguro. Literatura não é chuchu. O bom livro tem gosto e tempero. Pode ser irritantemente amargo ou incômodo feito farpa embaixo da unha (era capaz de ChatGPT censurar essa imagem, por “excessivamente dolorida”). O livro bom é o que fica. Como já disse uma escritora, um bom livro é aquele que “termina, mas continua em nossa cabeça”.
O livro que merece ser lido é aquele que marca o seu leitor com o turbilhão, a inconstante mistura de sensações. Parece um objetivo cada vez mais distante daqueles escritores que recorrem a mecanismos artificiais de escritura.