Na quarentena, meu grande companheiro é o Yuri, simpático filhote de cocker spaniel mas que, como todo filhote, é um sem-noção: detona livro e chinelo, derruba vaso, até mastiga o concreto da escada!
O pior é que não tem noção também da própria força. Às vezes, vem com tudo pra cima de mim e me machuca! Depois de gritar, reclamar etc, resolvi uma tática nova: uivar.
Imaginei que, se EU expressasse minha dor com uivos doloridos, quem sabe o Yuri não se compadecia e se arrependia do que me causou?
Ah! Que nada. Primeiro, ele ficava espantado. Ouvia com atenção, cheirava, pateava, gania e depois… iniciavam-se os uivos. Muitos. Longos. E a cada AUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUU o Yuri ficava mais e mais sentido. Dolorido. Mas não expressava o o arrependimento por me machucar, seus uivos e lamentos cresciam em desespero POR ELE MESMO! Era como se, atavicamente, o ato de uivar despertasse suas lembranças mais profundas. Afloravam à sua mente canina todas as infâmias, dores e melancolias de sua vida… tudo aquilo que eu, seguramente, sabia inexistentes. Mas que, na hora do uivo, lhe pareciam a mais absoluta expressão de realidade.
AUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUU
Bom, aproveito a história para uma reflexão que quero dividir com vocês.
Quanta gente não usa a dor alheia como estopim da própria desgraça?
Ao ouvir uma história triste, em vez de dar o ombro e oferecer a solidária compaixão, aproveita o momento para externar SUAS lembranças doloridas, como uma espécie de “disputa do sofrimento”?
EXEMPLO 1: Seu (sua) namorada lhe deu o fora. Você está triste, vai se consolar com um amigo. Mal abre a boca, “sabe a Fulana? Ela me dispensou ontem e…” Ahá! O amigo-da-onça nem espera você terminar a frase pra contra-atacar: “VOCÊ foi dispensado? E eu? Minha ex me deu o fora com um torpedo! Nem coragem de falar cara-a-cara, a canalha me…” e você, constrangidamente, acaba dando ombro e ouvidos a um lamentoso bla-blá-blá que, francamente, bem queria dispensar.
Exemplo 2: Entre num carro de aplicativo e jogue o papo no ar: “Tenho uma tia com câncer”. Aposto um milhão de sestércios que vai ouvir algo como: “Sua tia está com câncer de x…? Ah, isso não é nada. Câncer horroroso mesmo teve meu pai/avô/sobrinho/primo que…” e dá-lhe m*.
Por que fazemos isso ou passamos por esse tipo de situação? Confesso que não tenho certeza, só teorias. Talvez o ser humano médio tenha pavor de intimidade e o ato de consolar é de uma generosidade que a maioria de nós é incapaz de dar. Talvez por puro egoísmo o ouvinte prefira inverter a coisa, achando-se mais necessitado de consolo. Talvez o ouvinte acredite mesmo, como o meu cachorro, que suas dores são maiores do que aquelas que vai ouvir.
Minha sugestão é: NÃO HAJA FEITO UM CACHORRO UIVANTE.
Não se aproprie das dores alheias. Não entre na competição-de-sofrimento quando ouvir uma história triste. Seja generoso. Ouça até o fim, calado, o caso narrado pelo amigo que sofre. Não dê soluções ou palpites. Às vezes, as pessoas não querem sugestões de solução para os problemas; querem apenas desabafar.
Saber ouvir (e não uivar) é uma das bênçãos para que sejamos seres humanos melhores.